sábado, 12 de fevereiro de 2011

Da Crítica aos Críticos



Já há muito e, claro, sem total consciência, este blog ocupou a função de tentar lançar à parede as coisas que me emudecem. Daqui da minha zona de conforto eu confronto os desenhos produzidos por essas coisas que eu lanço à parede. Hoje venho propagar a sensação de desconforto que eu tive ao ler uma notícia no blog Arremedo, de André Kano. Em contrariedade a todas as outras [boas] emoções que já tive ao ler este veículo, hoje me senti no direito de ficar assustada com o produto daquela notícia. Ousando na intromissão de uma leitora e nada além, sem intenção de causar impressões de entendida no assunto jornalismo. Apenas com o sentimento de propagação, não da coisa ruim em si, mas para que os olhos estejam abertos e que não nos sintamos evoluídos. A atitude de censura precisa ser repudiada, e só podemos repudiar o que nos é sabido.

Segue a cópia do texto que li no Arremedo e que me impeliu a reproduzi-lo aqui:


[por André Kano]

Ontem me chegou, para plena consternação, a notícia de que Aguirre Peixoto, considerado um dos melhores repórteres do jornalismo baiano, foi demitido sumariamente por produzir uma reportagem contrária aos interesses de um conglomerado de empreendedores imobiliários de Salvador, anunciantes do jornal A Tarde, onde ele até ontem trabalhava. A despeito de ter sido pautado, de ter sido revisado e editado, Aguirre, o elo mais fraco da corrente, foi quem acabou responsabilizado. E demitido.

No jornal A Tarde, o agora desempregado repórter trabalhava ao lado do fotojornalista Lunaé Parracho, já tantas vezes presente nos arremedos que aqui publico. Recebi de Lunaé um relato emocionado sobre o momento em que a redação reunida vivenciava os últimos momentos do colega por lá. De iniciativa da mesma redação, uma carta aberta de repúdio à decisão do noticioso está sendo divulgada, e dou eu aqui minha modestíssima contribuição, esperando que muitos de vocês que leiam isso compartilhem essa notícia em suas redes sociais.

"Quem passou lá embaixo nessa hora viu a editoria inteira de Brasil reunida, de pé, em círculo. Expressões graves, subiram de volta à redação para ler a carta. Leitura feita por Adilson Borges, editor de política, que não segurou as lágrimas no fim, aplaudido por todos. Ele empunha os papéis onde está impressa a carta e se mantém de pé ao lado de Aguirre. Tenho a impressão de que ele olha, naquele exato momento, na face da própria vida, por uma estrada de nem sei quanto tempo, uns 20 ou mais anos de profissão. Foi ele quem outro dia escreveu no spark – o comunicador instantaneo usado aqui: “jornalismo sem emoção é relatório”. Do lado dele, o editor-coordenador, Flávio Oliveira, visivelmente transtornado. Não conheço muito os dois, e ainda que não conhecesse nada, bastaria observar aquela cena para saber quem são. Deve existir algo como um efeito moral, uma energia que emana da alma humana em uma situação como essa. Um dos diretores do jornal se aproxima e fala também. Não é possível passar incólume, acredito. E cada um dos presentes se emociona, à sua maneira. O silêncio é foda. tem horas que só ele dá conta.

Eu estava almoçando no nozes hoje mais cedo, de onde vi Aguirre chegar no jornal, caminhando apressado, curvado pelo peso daquela mochila que carrega a tira colo. Algumas horas depois, demitido, ele não parece triste. Ao contrário, sorri em um certo momento. Deve ser a tranquilidade da consciência. Ele recebe o abraço de quase todos e vai embora. Cabeça em pé. E a mochila já nem parece tão pesada."


Carta aberta – Redação do Jornal A TARDE, Salvador BA

Hoje é um dia triste para não só para nossa história pessoal, mas também para A TARDE e, principalmente, para o jornalismo da Bahia. Um dia em que A TARDE, um jornal quase centenário e que já foi o maior do Norte e Nordeste e que tinha o singelo slogan “Saiu n´A TARDE é verdade” se curvou. Cedeu a pressões econômicas difusas e demitiu um profissional exemplar.

Aguirre Peixoto teve a cabeça entregue em uma bandeja de prata a empresas do mercado imobiliário em uma tentativa de atração/reaproximação com anunciantes deste setor. Tentativa esta que pode dar certo ou não. Uma medida justificada por um suposto “erro grosseiro” não reconhecido pela Diretoria de Jornalismo, pelo Editor-Executivo, pelo Editor-Chefe, por secretários de Redação, Editor Coordenador ou editores de Política.

Uma medida, enfim, que só pode ser entendida como uma demonstração de força excessiva, intimidatória à autoridade da Direção de Jornalismo, à Coordenação de Brasil e à Editoria de Política. Uma demonstração de força desproporcional, porque forte não é aquele que age com força contra algo ou alguém mais fraco. Forte seria enfrentar, como o jornalismo de A TARDE estava enfrentando, empresários que iludidos pela promessa do lucro fácil e rápido põem em risco recursos financeiros de consumidores, o meio ambiente da cidade e que aviltam, desta forma, toda a cidadania soteropolitana.

Aguirre era o elo mais fraco da corrente. Acima dele havia editores, coordenador, secretários de redação, editor-executivo, editor-chefe, diretor de Jornalismo. Todos, em alguma medida, aprovaram a pauta, orientaram o trabalho de reportagem e autorizaram a publicação da reportagem. Isso foi feito sem irresponsabilidades, pois não foi constatado nenhum erro, muito menos um “erro grosseiro”. Se algum erro foi cometido, o erro foi o da prática do jornalismo, uma atividade cada vez mais subversiva em época em que propositadamente se misturam alhos e bugalhos para confundir, iludir, manipular a opinião publica, a sociedade, a cidadania. É de se estranhar que uma empresa que se coloca como defensora da cidadania aja de tão vil maneira contra um de seus melhores profissionais.

Recapitulando, Aguirre foi pautado para dar sequência às reportagens que fazia sobre a Tecnovia (antigo Parque Tecnológico). O fato novo era uma liminar concedida pela 10ª Vara Federal em que cassava multa aplicada ao empreendimento pelo Ibama. Era essa a pauta. No dia seguinte, a Tribuna da Bahia publicou matéria em que dizia que a liminar (decisão que pode ser revista) acabava com o processo criminal contra o empreendimento, que envolve Governo do Estado e duas poderosas construtoras. A matéria de A TARDE – dentro do padrão de qualidade que um dia fez deste um jornal de referência – ouviu o MPF e mostrou que se tratavam de dois processos distintos. O da multa, que foi cassada liminarmente e que o MPF afirmava que recorreria da decisão; e o criminal, que continuava em tramitação normal. A matéria de A TARDE estava tão certa que o MPF, posteriormente, publicou nota oficial na qual desmentia o teor da reportagem da Tribuna da Bahia. Essa foi a razão suficiente para o repórter ter a cabeça entregue como prêmio a possíveis anunciantes.

O interesse público? A defesa da cidadania? O histórico ético, de manchetes exclusivas, de boas e importantes reportagens? Nada disso importou a A TARDE. Importou a satisfação a um grupo de empresários, a uma, duas ou três fontes insatisfeitas. Voltamos a tempos medievais, quando fontes e órgãos insatisfeitos mandavam em A TARDE, colocavam e derrubavam profissionais. Tempo em que o jornalismo era mínimo.

“Jornalismo é oposição. O resto é balcão de secos e molhados”. Essa é uma famosa frase de Millor Fernandes. Dispensado o radicalismo dela, é de se ter em mente que Jornalismo é uma atividade que incomoda. Defender o conjunto da sociedade, seu lado mais fraco, incomoda. É preciso que a Direção de A TARDE entenda que a sustentabilidade do negócio jornal depende do seu grau de alinhamento com a sociedade civil (organizada e, principalmente, desorganizada). A força de um veículo de comunicação não está nos números de circulação ou de de anunciantes, mas nas batalhas travadas em prol dos direitos coletivos e individuais diariamente aviltados pelo bruto e burro poder econômico.

Credibilidade é um valor que se conquista um pouco a cada dia e que se perde em segundos. E, graças a ações como esta, a credibilidade de A TARDE escorre pelo ralo a incrível velocidade, assim como sua liderança, assim como seus anunciantes. Sem jornalismo, o jornal (qualquer jornal) pode sobreviver alguns anos de anúncios amigos. Mas com jornalismo, um jornal sobrevive à história.

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