terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Fome de Enfeitar Retinas

Enfeitar a visão é um permanente exercício de salvamento, caso contrário enxergaria somente a podridão que permeia; caso contrário a retina faleceria pelo escárnio. Isso é aceitável para você? Não para mim. Um outro ser quer saltar por meus olhos, sua vontade é sair e degolar o rebanho humano da sociedade, mas, incluído aí estaria o seu próprio pescoço, logo, desistir da ideia se torna algo mais plausível para o momento. A maneira mais suave de esconder a lágrima que se desfaz é chamar a atenção para as pálpebras, colori-las. Mascarar seu rosto e corpo na tentativa de que os transeuntes não percebam sua real natureza, não percebam uma noite mal dormida por pensar nas dívidas que tem e no dinheiro que não vai ter para pagá-las. Mais difícil é esconder a solidão que dói sem alguém que compartilhe de uma loucura qualquer. Se tenta esconder a incerteza que dorme ao seu lado na cama, intencionada em lhe molestar com suas mãos frias, de lhe tirar o fôlego até durante o sossego que o sono lhe trouxe.
Várias são as desculpas dessa nossa escuridão: o mundo é veloz, consumista e descartável. Vamos usar de um pouco de nexo e trocar a palavra mundo pela definição mais próxima da sua essência: você e eu. Claro que eu não poderia propor de lhe colocar sobre os ombros algumas das mazelas mais despropositadas de nosso sutil rebanho, mas, vamos confessar, há limite até para a exclusão de nossa participação neste circo (ou hospício, como queira). Não sejamos tolos ao participar o diabo nisto, muito menos a deus, isso nada tem a ver com divindades, pelo contrário. Este atual estado precipitado de hecatombe se deve a todos nós, atuantes desta cena.
Carrego o mundo na potencialidade de ver cores como elas são, reais. Canso os olhos de ver tanto acontecer sem sentido. Até o noticiário do errado se torna mais inescrupuloso, porque nos vendemos para sentir o gosto da desgraça alheia em nossa saliva. Depois disso, ficamos hipnotizados pela tragédia.
Enfeito as minhas retinas. As solidifico de algum modo, as recoloco no eixo da realidade próxima e atingível, para que elas não pereçam de vez e resolvam fazer suas malas e me deixar estagnada na loucura da indignação. Vou me perfazendo temporariamente satisfeita pela ávida gula que meus olhos ainda possuem, alimentando minha visão com as sinceridades que me interessam, aprendendo deliciosamente a separar o que não me compete ver e, principalmente, deixando de inventar desculpas glamurosas. Em doses homeopáticas, vou permitindo que a retina engula o mundo e processe seus fragmentos. Vou sofrendo dessas sinceridades, buscando uma clareza que ainda não tenho e forças em uma visão que ainda não é perfeita.


[imagens: Wes2it]

4 comentários:

ErikaH Azzevedo disse...

Muito forte minha menina, e extremamente maduro. Eu renovo meu olhar diário com a poesia, como se dela fosse a "minha vida secreta"deposito na retina estrelinhas de açuçar pra meu olhar de fome e carrego uma sacola de sonhos em cada curva do olhar....sou tantas vezes a que faz o jogo do contente....a que nunca está cega pra vida, mas a que escolheu a ver a vida com os melhores olhos, sempre do lado mais doce e suave das coisas...ou quase sempre. E qdo a realidade bate, e qdo a vida me dá um choque de realidade, eu sinto meus olhos perfurarem....a minha retina quer ser seletiva...."Enfeito as minhas retinas. As solidifico de algum modo, as recoloco no eixo da realidade próxima e atingível, para que elas não pereçam de vez e resolvam fazer suas malas e me deixar estagnada na loucura da indignação."...é assim que tb vou seguindo.....de maneira mais lúdica, menos realista, de um jeito mais poético, escolho não o que meus olhos precisam ver mas sim o que eles precisam guardar.

Mais uma vez adorei o texto...tu tens o dom de me tocar por tuas palavras.

Bjos amora.

Erikah

Lud disse...

Tantas e tantas coisas me passaram pela cabeça lendo seu texto que ficou dificil até saber o que comentar. Pois também enfeito minhas retinas todos os dias. Tanto que muitas vezes chego a fechar os olhos. Com minha teimosia natural me recuso a ver algumas coisas que estão na minha cara.

Ivan Bueno disse...

Oi, Tatiani.
Cheguei aqui por indicação da Erikah, que leu seu texto e um texto meu e viu semelhanças no conteúdo.
Belo, seu texto, e igualmente profundo e denso. O olhar é o que nossos textos têm em comum.
Cheguei, vou lendo e já sou seguidor. Apareça por lá, também, que será muito bem vinda.
Beijo,

Ivan Bueno
blog: Empirismo Vernacular
www.eng-ivanbueno.blogspot.com

Sônia Brandão disse...

Estamos num tempo bruto, mas os jardins nascem nos olhos.

Beijos e um Feliz 2011 para você.